O importante não é aquilo que fazem de nós, mas o que nós mesmos fazemos do que os outros fizeram de nós.
JEAN-PAUL SARTRE

sábado, 22 de junho de 2013

«TODAS AS CARTAS DE AMOR SÃO RIDÍCULAS» - FERNANDO PESSOA

Fernando e Ofélia
O encontro/desencontro destes dois seres predestinados para nunca se encontrarem e, uma vez encontrados, cada um deles viver, um na plena e redentora ilusão de se saber amado – miticamente «para sempre» -, e outro num mundo alheio, insuspeitado e ingénuo, votada à desilusão.

Se Ofélia, tivesse lido o menor dos poemas do seu efémero e improvável «namorado» onde nada se glosa senão a evidência de que a vida é pura Ficção e a chamada Ficção a única e impenetrável «verdade» dela, não teria embarcado nessa travessia do coração para um porto que nunca existiu para o companheiro/fantasma dessa viagem sem viajante dentro. Ofélia tinha razão quando Fernando vinha com o seu duplo infernal Álvaro de Campos, que a afastava dela. Fernando Pessoa teve como única musa o desamor.
No combate venceu a Literatura, monstro sublime da imaginação, única paixão que assolou Pessoa.(Eduardo Lourenço)

ALGUMAS CARTAS DE FERNANDO A OFÉLIA, UMA DELAS ESCRITA PELO SEU HETERÓNIMO ÁLVARO DE CAMPOS:

 Meu Be«be»zinho lindo:
     
Não imaginas a graça que te achei hoje á janella da casa de tua irmã! Ainda bem que estavas alegre e que mostraste prazer em me ver (Álvaro de Campos).
     
Tenho estado muito triste, e além d'isso muito cansado - triste não só por te não poder ver, como também pelas complicações que outras pessoas teem interposto no nosso caminho. Chego a crer que a influência constante, insistente, hábil d'essas pessoas; não ralhando contigo, não se oppondo de modo evidente, mas trabalhando lentamente sobre o teu espírito, venha a levar-te finalmente a não gostar de mim. Sinto-me já differente; já não és a mesma que eras no escriptorio. Não digo que tu própria tenhas dado por isso; mas dei eu, ou, pelo menos, julguei dar por isso. Oxalá me tenha enganado...
     
Olha, filhinha: não vejo nada claro no futuro. Quero dizer: não vejo o que vãe haver, ou o que vãe ser de nós, dado, de mais a mais, o teu feitio de cederes a todas as influencias de familia, e de em tudo seres de uma opinião contraria á minha. No escriptorio eras mais dócil, mais meiga, mais amorável.
     
Enfim...
     
Amanhã passo  á mesma hora no Largo de Camões. Poderás tu apparecer à janella?
     
Sempre e muito teu
     
CARTA A OFÉLIA QUEIRÓS - 31 DE MAIO DE 1920
     
     
Bebezinho do Nininho-ninho:
     
Oh!
     
Venho só quevê pâ dizê ó Bebezinho que gotei muito da catinha dela. Oh!
     
E também tive munta pena de não tá ó pé do Bebé pâ le dá jinhos.
     
Oh! O Nininho é pequenininho!
     
Hoje o Nininho não vai a Belém porque, como não sabia se havia carros, combinei tá aqui às seis ho'as.
     
Amanhã, a não sê qu'o Nininho não possa é que sai daqui pelas cinco e meia. [desenho de uma meia] (isto é a meia das cinco e meia).
     
Amanhã o Bebé espera pelo Nininho, sim? Em Belém, sim? Sim?
     
Jinhos, jinhos e mais jinhos.
     
CARTA A OPHÉLIA QUEIROZ – 25 DE SETEMBRO DE 1929
   
   
Exma. Senhora D. Ophélia Queiroz:
    
Um abjecto e miserável indivíduo chamado Fernando Pessoa, meu particular e querido amigo, encarregou-me de comunicar a V. Ex.ª — considerando que o estado mental dele o impede de comunicar qualquer coisa, mesmo a uma ervilha seca (exemplo da obediência e da disciplina) — que V. Ex. ª está proibida de:
(1) pesar menos gramas,
(2) comer pouco,
(3) não dormir nada,
(4) ter febre,
(5) pensar no indivíduo em questão.
   
Pela minha parte, e como íntimo e sincero amigo que sou do meliante de cuja comunicação (com sacrifício) me encarrego, aconselho V. Ex.ª a pegar na imagem mental, que acaso tenha formado do indivíduo cuja citação está estragando este papel razoavelmente branco, e deitar essa imagem mental na pia, por ser materialmente impossível dar esse justo Destino à entidade fingidamente humana a quem ele competiria, se houvesse justiça no mundo.
   
Cumprimenta V. Ex. ª
   
Álvaro de Campos
eng. Naval
CARTA A OFÉLIA QUEIRÓS - 9 DE OUTUBRO DE 1929
   
   
     Terrivel Bébé
   
      Gosto das suas cartas, que são meiguinhas, e também gosto de si, que é meiguinha também. E é bombom, e é vespa, e é mel, que é das abelhas e não das vespas, e tudo está certo, e o bebé deve escrever-me sempre, mesmo que eu não escreva, que é  sempre, e eu estou triste, e sou maluco, e ninguém gosta de mim, e também porque é que a havia de gostar, e isso mesmo, e torna tudo ao princípio, e parece-me que ainda lhe telephono hoje, e gostava de lhe dar um beijo na bocca, com exactidão e gulodice e comer-lhe a bocca e comer os beijinhos que tivesse lá escondidos e encostar-me ao seu hombro e escorregar para a ternura dos pombinhos, e pedir-lhe desculpa, e a desculpa ser a fingir, e tornar muitas vezes, e ponto final até recomeçar, e porque é que a Ophelinha gosta de um meliante e de um cevado e de um javardo e de um indivíduo com ventas de contador de gás e expressão geral de não estar ali mas na pia da casa ao lado, e exactamente, e enfim, e vou acabar porque estou doido, e estive sempre, e é de nascença, que é como quem diz desde que nasci, e eu gostava que a Bebé fôsse uma boneca minha, e eu fazia como uma criança, despia-a, e o papel acaba aqui mesmo, e isto parece ser impossível ser escripto por um ente humano, mas é escripto por mim .
 


 
Cartas de Amor, Fernando Pessoa. (Organização, posfácio e notas de David Mourão Ferreira. Preâmbulo e estabelecimento do texto de Maria da Graça Queiroz.) Lisboa, Ática, 1978 (3ª ed. 1994)





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