O importante não é aquilo que fazem de nós, mas o que nós mesmos fazemos do que os outros fizeram de nós.
JEAN-PAUL SARTRE

sábado, 18 de setembro de 2010

EXCERTO DO PLANETA DAS PEÚGAS RÔTAS DE MIA COUTO



Em 1998, cerca de 100 pessoas morreram no Monte Tumbine, na Zambéziana, por causa de um abatimento de terras. As terras desabaram porque se retirou a cobertura florestal das encostas e as chuvas arrastaram os solos. Foram feitos relatórios com recomendações muito claras. Os relatórios desapareceram. A floresta voltou a ser cortada e as pessoas voltaram a povoar as regiões perigosas. O que resta de Tumbine são as vozes que têm uma outra explicação. Essas vozes insistem na seguinte versão: há um dragão que mora no Monte de Tumbine em Milange e que desperta de 5 em 5 anos para ir deitar os ovos no alto mar. Para não ser visto, o dragão cria o caos e a escuridão enquanto atravessa os céus desapercebido.Existe uma poderosa força poética nesta interpretação dos fenómenos geológicos. Mas a poesia e as cerimónias dos espíritos não bastam para assegurar que uma nova tragédia não se venha a repetir.A minha pergunta é: estamos nós aqui assim tão longe dessas crenças? O facto de vivermos em cidades, com arranha-céus, no meio de computadores e da internet de banda larga, será que tudo isso nos isenta de termos um pé na explicação mágica do mundo? Basta olhar para os nossos jornais para termos a resposta. Junto da tabela da taxa de câmbio encontra-se o anúncio do chamado médico tradicional, esse generoso personagem que se propõe resolver problemas básicos da nossa vida. Se percorrerem a lista dos serviços oferecidos por esses médicos tradicionais verificarão que figuram os seguintes produtos: (vou citar os feitos propagados, saltando os milagres conseguidos na saúde) faz subir na Vida; ajuda a promoção no emprego; faz passar no exame; ajuda a recuperar o esposo ou esposa. Parodiando a linguagem moderna dos relatórios, eu referi, um por um, os outputs do job description do nosso glorioso médico tradicional. Numa palavra, o atirador de sortes faz surgir por magia tudo aquilo que só pode resultar do esforço, do trabalho e do suor. De novo, interroguemos as palavras que nós próprios criamos e usamos. Na realidade, "médicos tradicionais" é um nome duplamente falso. Primeiro, eles não são médicos. A medicina é um domínio muito particular do conhecimento científico. Não há médicos tradicionais como não há engenheiros tradicionais nem pilotos de avião tradicionais. Não se trata aqui de negar as sabedorias locais, nem de desvalorizar a importância das lógicas rurais. Mas os anunciantes não são médicos e também não são tão "tradicionais" assim. As práticas de feitiçaria são profundamente modernas, estão nascendo e sendo refeitas na actualidade dos nossos centros urbanos.(Um bom exemplo dessa habilidade de incorporação do moderno é o de anúncio que eu recortei da nossa imprensa em que um destes curandeiros anunciava textualmente: curamos asma, diabetes e borbulhas; tratamos doenças sexuais e dores de cabeça; afastamos má sorte e... tiramos fotocópias.) Durante muito tempo, era interdito aos verdadeiros médicos fazerem publicidade nos órgãos de informação. E, no entanto, esses outros chamados de tradicionais tinham permissão de se anunciarem.Porquê esta complacência? Porque, no fundo, nós estamos disponíveis para acreditar. Nós pertencemos a esse universo, mesmo que, em simultâneo, já pertençamos a outros imaginários. Não são apenas os pobres, os menos educados que partilham esses dois mundos. São quadros de formação superior, são dirigentes políticos que procuram a bênção para serem promovidos e para terem sucesso nas suas carreiras.

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